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Língua Afiada

Língua Portuguesa - o que ensinam os pais aos filhos?

As línguas evoluem conforme a evolução da sociedade e do seu uso, é por isso que hoje encontramos no dicionário palavras novas que começaram como modas e que se enraizaram de tal forma que passaram a ter o seu lugar na nossa língua, como exemplo a palavra bué, o seu uso continua a estar associado a uma linguagem informal, mas já consta no dicionário.

Se o calão tem um papel importante na evolução da língua, também palavras formais podem ficar na moda e o seu uso passar a ser frequente, temos o exemplo da palavra procrastinar que de repente passou a estar em voga.

A língua sofre diversas influências e a forma como falamos e escrevemos está muitas vezes relacionada com o que vamos lendo, é por este motivo que a língua portuguesa tem sido ameaçada, têm-se disseminado um conjunto de tiques que degradam e retiram até significado ao que escrevemos.

Se há trejeitos utilizados por comentadores que viram moda e que não causam grande prejuízo por serem corretos, outros há que não fazem qualquer sentido e que são um verdadeiro atentado à língua portuguesa.

Ultimamente há um tique de escrita que tenho visto com frequência e que me irrita até aos ossos e me deixa de cabelos em pé, o uso indiscriminado e incorreto do advérbio de lugar – onde e do pronome relativo – que, a moda é tal que algumas pessoas parecem usá-los como muletas.

“estou com uma crise alérgica em que me afetou as pálpebras”

“fui ao médico onde me foi receitado”

“ liguei à pessoa XPTO onde ele me respondeu”

 

É incrível o que os lugares agora fazem, ouvem, falam e até prescrevem medicamentos.

Se estão a perguntar onde se encontram estas pérolas? Um pouco por todo lado, mas as redes sociais são férteis em exemplos, os Grupos de Mães são a maravilha das maravilhas no que toca parvoíces e a erros de português, o problema é que se propagam as parvoíces e os erros, se as parvoíces, na maioria das vezes, espero eu, terminam com uma ida ao pediatra, já os erros persistem.

Infelizmente e correndo o risco de generalizar, acho que os portugueses estão cada vez mais analfabetos, já que ser analfabeto nos dias de hoje não é não saber ler, nem escrever é muito mais complexo que isso.

Mudam-se os tempos, mudam-se as exigências, mas as pessoas não evoluem na mesma proporção e dou por mim a pensar como é que aquelas mães vão acompanhar o percurso escolar dos filhos quando não conseguem escrever uma única frase sem um erro ortográfico.

Não admira que ainda exista uma relação direta entre a escolaridade e nível social dos pais com o aproveitamento escolar dos filhos, seria de esperar que pessoas que têm 30, 40 e 50 anos estivessem hoje mais bem preparadas para acompanhar os filhos do que os seus pais estiveram, infelizmente não é verdade.

Os portugueses não têm tempo para filhos

Em 2016 escrevi que os “Portugueses não têm dinheiro para filhos”, hoje escrevo sobre o tempo, na verdade os portugueses não têm dinheiro, nem tempo para filhos, é um ato de coragem decidir ser mãe e pai em Portugal.

 

"é preciso saber lidar com a realidade que não estaremos lá nos momentos mais importantes"

 

Temos os filhos para os outros criarem, ainda bem pequeninos entregamo-los aos cuidados de familiares quando temos sorte ou de desconhecidos quando não temos outra opção, muitas vezes numa ginástica orçamental gigantesca, as creches são dispendiosas e impessoais, tentamos encontrar justificações para não sermos nós a tomar conta deles, mas a única e verdadeira justificação é que somos obrigados a trabalhar por questões financeiras.

O horário de amamentação permite que a mãe trabalhe 6 horas, se às 6h acrescentarmos a hora de almoço e uma hora para a viagem, são 8h fora de casa, precisamente as 8h em que o bebé se encontra mais ativo, precisamente nas 8h que o bebé começa a dizer as primeiras palavras, começa a fazer as primeiras habilidades, deve ser de uma tristeza profunda perceber que quem ouviu a primeira palavra do nosso filho não fomos nós.

Para além da angústia da ausência e da preocupação é preciso saber lidar com a realidade que não estaremos lá nos momentos mais importantes, não veremos provavelmente os seus primeiros passos e não estaremos lá para os reconfortar após a primeira queda.

 

"Não é de espantar que se recorra a todas as estratégias e mais algumas para distrair e entreter as crianças"

 

Terminado o horário reduzido, a mãe passa a estar 10h fora de casa, numa altura em que a criança tem de dormir 10 a 11 horas por noite, 10h para trabalho, 11h para dormir sobram 3h, 3h que incluem o banho, o jantar e possivelmente a ceia, resta-nos quanto tempo para dedicar à criança, tendo em conta que os pais também têm de comer e preparar as refeições?

Este cenário é quase idílico, pois tem como base um horário de trabalho de 8h de segunda a sexta perto de casa e idêntico para ambos os pais, se falarmos em pessoas que perdem 1h em cada deslocação, em horas extra e trabalhos por turnos, esta logística muda e piora consideravelmente.

Não é de espantar que se recorra a todas as estratégias e mais algumas para distrair e entreter as crianças, os pais não têm tempo para brincar com eles, muitas vezes chegam esgotados e stressados de um complicado dia de trabalho e não conseguem encontrar energia para ter tempo de qualidade com os filhos, é difícil ter tempo de qualidade sem uma vida com qualidade.

 

"é difícil conciliar a vida familiar com a vida profissional, alguém fica sempre a perder, normalmente o elo mais fraco, as crianças"

 

Com o passar dos anos a situação só piora, começam as atividades extra, os eventos desportivos aos fins-de-semana, a vida social das crianças que começa a ser mais intensa que a dos pais e os TPC, alguém entende como é que com carga horária que os miúdos têm, estes ainda levem inúmeros exercícios para fazer em casa?

Os pais dividem-se para dar conta das tarefas, é difícil conciliar a vida familiar com a vida profissional, alguém fica sempre a perder, normalmente o elo mais fraco, as crianças, multiplicam-se os problemas, os pais deixam de ser pais, deixam de ser um casal e às vezes chegam a perder a própria identidade, vivendo em piloto automático numa roda em que não há tempo para nada, quanto mais tempo para pensar na vida.

 

"os portugueses não têm dinheiro para ter uma vida digna"

 

Mem sequer podemos acusar os pais de trabalharem para o consumo, fica bem dizer que vivemos alheados dos filhos porque lhe queremos dar tudo, não é verdade, vivemos alheados dos filhos porque não temos alternativa, porque temos de os alimentar, vestir e educar.

Caímos na falácia que estamos assim porque queremos, porque temos as prioridades invertidas, na verdade não temos grandes alternativas, mas preferimos pensar que temos, é mais fácil assumir a culpa do que perceber que não vivemos para sermos felizes, mas que vivemos para pagar contas, na verdade como escrevi em 2017, os portugueses não têm dinheiro para ter uma vida digna.

 

"Os portugueses não têm tempo para viver como podem ter tempo para ter filhos?"

 

Assumiu-se que é normal entupir as crianças de atividades desde as 7h da manhã às 7h da tarde, deixando-lhe pouco tempo para serem crianças, assumimos que isso lhes faz bem, formatamo-las para serem quadradas, sem pensamento crítico, sem curiosidade e dizemos-lhe que um dia terão tudo só porque achamos que merecem ter.

Nem sequer fazemos o exercício que ninguém tem o que é mais importante, tempo para viver. Os portugueses não têm tempo para viver como podem ter tempo para ter filhos?

Continuamos embrenhados em não assuntos, em indignações sem sentido, entupidos até aos olhos de lixo, de notícias falsas, de falsas questões, de contestações desprovidas de sentido e continuamos sem reclamar o que realmente importa, tempo para viver.

 

"as pessoas andam revoltadas e frustradas e acham que é do tempo estar cinzento"

 

Portugal é dos países onde mais se trabalha na Europa, 39,5h semanais, só é ultrapassado pela Grécia, curiosamente os países mais produtivos são aqueles onde se trabalha menos horas, de notar que a média em Portugal incorpora a função pública que neste momento trabalha 35 horas semanais, caso contrário seria ainda pior.   

Os dados são bem específicos, são factos, há uma correlação entre o horário de trabalho e produtividade, há inúmeros estudos que concluem que para a nossa saúde deveríamos trabalhar menos horas, quanto mais trabalhamos, mais cansaço acumulamos, somos menos produtivos, temos de realizar horas extras, trabalhamos mais, mais cansaço e o ciclo nunca é interrompido.

Não temos tempo para ter filhos, não temos tempo para viver, mas ninguém parece estar realmente preocupado com isso e os dias sucedem-se uns atrás dos outros e as pessoas andam revoltadas e frustradas e acham que é do tempo estar cinzento, a culpa é do tempo, mas não do clima, é da falta de tempo para viver.

O escândalo do professor e as prioridades dos portugueses

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Bastou uma frase polémica para que a vida de uma pessoa fosse completamente devassada pelos polícias de serviço das redes socias, aproveitando a onda, porque o que interessa é cliques e leitores, os jornais não se rogaram em investigar e divulgar toda a informação que encontraram do professor universitário.

Primeiro é preciso esclarecer que ninguém deveria ter o direito de investigar a vida de uma pessoa só porque a mesma decidiu participar num debate televisivo, quando isto acontece o que nos estão a dizer é que devemos ser muito cuidadosos com o que dizemos e com o que fazemos, não vá alguém lembrar-se de nos ridicularizar nas redes sociais e gerar-se um movimento de escrutínio de toda a nossa vida.

 

O professor tocou em dois temas sagrados, crianças e velhinhos, são espécies protegidas, mas apenas em pensamento, pois a realidade é bem diferente do que se defende por nas redes sociais, se as crianças ainda vão conquistando alguma simpatia e dedicação, mais não seja por obrigação, infelizmente o que não faltam são pais que deixam os filhos vigiados por tablets e smartphones, aos velhinhos nem a obrigação lhes vale na hora de receberem cuidados e carinho, a maioria são abandonados e esquecidos, vivendo em solidão e muitas vezes precariamente.

É precisamente deste abandono que vem a necessidade de obrigar um neto a beijar um avô, tirando um ou outro caso de crianças que simplesmente não gostam de beijos, todas as outras beijam voluntariamente as pessoas que gostam e com as quais convivem, além disso as crianças são espelhos e retribuem o que recebem, se lhes dermos carinho e atenção é isso que receberemos delas.

A afirmação do professor pode parecer absurda, mas na verdade só assume esse carácter pela forma como foi transmitida, usadas outras palavras e não se fazendo um paralelismo tão gravoso, a reação das pessoas seria com certeza outra.

 

Beijar é uma forma de cumprimento em Portugal, é uma saudação que ao contrário de outros países e culturas é normal entre estranhos, não é preciso ter intimidade com uma pessoa para a cumprimentar com dois beijinhos, basta a conhecermos num contexto descontraído, é perfeitamente habitual encontramos um amigo e cumprimentarmos quem o acompanha de beijinho.

Beijar como cumprimento é uma norma social e por isso incutimo-la nas crianças como sendo natural e como fazendo parte da boa-educação, mas há limites, limites esses que começam quando colocamos em causa a liberdade e o espaço da criança, é aqui que os pais e restante família tem o difícil papel de julgar se a criança está a ser mal-educada ou a proteger-se de algo que não gosta.

Nem todas as crianças são beijoqueiras, nem todas adoram dar beijos a estranhos, principalmente se esses estranhos vierem acompanhados de odores estranhos e viscosidades, desenganem-se se pensam que só se afastam de velhinhos, muitas vezes afastam-se até de outras crianças, tudo dependo do aspeto da pessoa e do grau de nojo da criança.

 

Obrigar uma criança a parar de brincar para cumprimentar uma pessoa é ensinar-lhe a ser educada, obrigar uma criança visivelmente incomodada, enojada ou envergonhada a beijar alguém pode ser realmente uma violência.

Se essa violência justificará a violência que a criança infligirá mais tarde a outras pessoas, creio que não será suficiente, mas num conjunto educativo onde o amor é visto como obrigação, onde é comprado, onde a violência é praticada todos os dias seja por imposições, seja por palmadas, onde exista controlo extremo, manipulação e modelação, estão reunidas as condições para que crianças que cresçam nesse ambiente considerem aceitável controlar a namorada ou namorado, considerem normal manipula-los e compra-los e considerem normal punir com violência física.

 

As crianças são esponjas e refletem os comportamentos dos que as rodeiam, por isso é muito importante a explicar o porquê que alguns comportamentos, não basta simplesmente obrigar, é necessário contextualizar.

Existe um grande paradoxo na educação nos nossos dias, por um lado tenta-se atender a todas as necessidades e desejos da criança, tenta-se que tenha voz ativa e foi-lhe reconhecido um estatuto de vontade que nunca antes existiu, por outro lado deixou-se de fazer o inverso, de explicar o porquê das coisas, de explicar o conceito de autoridade, os pais não se podem colocar em pé de igualdade com os filhos, isso dificulta não só a sua perceção de autoridade como lhes dá uma noção errónea do que é certo e errado, há uma hierarquia familiar e se devemos dar voz às crianças, nunca as podemos deixar esquecer de que quem tem a última palavra são os pais.

 

É lamentável que um comentário num debate televisivo gere uma onda tão grande de contestação e descontentamento, estamos no fundo a falar da opinião de uma pessoa, que concordando-se ou não com ela, é necessário respeitar, uma opinião que não interfere com a nossa vida, enquanto isso são revelados todos os dias esquemas que nos prejudicam direta e indiretamente, nomeações estapafúrdias de políticos para cargos para os quais não têm competências, assistimos a penas suspensas para crimes financeiros, ao arrasto de processos de fraude e corrupção, mas o que interessa é a opinião que um professor tem sobre os netos serem obrigados a beijar os avós.

 

O que é realmente importante é devassar a vida de uma pessoa, quando todos os dias devassam a nossa com a maior descontração e tamanho descaramento que o aceitamos como boas ovelhas que somos, todas ordenadas em fila para que nos cortem a lã mesmo que isso nos deixe a tremer de frio.

 

*Imagem Leticia Lanz