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Língua Afiada

Os portugueses não têm tempo para filhos

Em 2016 escrevi que os “Portugueses não têm dinheiro para filhos”, hoje escrevo sobre o tempo, na verdade os portugueses não têm dinheiro, nem tempo para filhos, é um ato de coragem decidir ser mãe e pai em Portugal.

 

"é preciso saber lidar com a realidade que não estaremos lá nos momentos mais importantes"

 

Temos os filhos para os outros criarem, ainda bem pequeninos entregamo-los aos cuidados de familiares quando temos sorte ou de desconhecidos quando não temos outra opção, muitas vezes numa ginástica orçamental gigantesca, as creches são dispendiosas e impessoais, tentamos encontrar justificações para não sermos nós a tomar conta deles, mas a única e verdadeira justificação é que somos obrigados a trabalhar por questões financeiras.

O horário de amamentação permite que a mãe trabalhe 6 horas, se às 6h acrescentarmos a hora de almoço e uma hora para a viagem, são 8h fora de casa, precisamente as 8h em que o bebé se encontra mais ativo, precisamente nas 8h que o bebé começa a dizer as primeiras palavras, começa a fazer as primeiras habilidades, deve ser de uma tristeza profunda perceber que quem ouviu a primeira palavra do nosso filho não fomos nós.

Para além da angústia da ausência e da preocupação é preciso saber lidar com a realidade que não estaremos lá nos momentos mais importantes, não veremos provavelmente os seus primeiros passos e não estaremos lá para os reconfortar após a primeira queda.

 

"Não é de espantar que se recorra a todas as estratégias e mais algumas para distrair e entreter as crianças"

 

Terminado o horário reduzido, a mãe passa a estar 10h fora de casa, numa altura em que a criança tem de dormir 10 a 11 horas por noite, 10h para trabalho, 11h para dormir sobram 3h, 3h que incluem o banho, o jantar e possivelmente a ceia, resta-nos quanto tempo para dedicar à criança, tendo em conta que os pais também têm de comer e preparar as refeições?

Este cenário é quase idílico, pois tem como base um horário de trabalho de 8h de segunda a sexta perto de casa e idêntico para ambos os pais, se falarmos em pessoas que perdem 1h em cada deslocação, em horas extra e trabalhos por turnos, esta logística muda e piora consideravelmente.

Não é de espantar que se recorra a todas as estratégias e mais algumas para distrair e entreter as crianças, os pais não têm tempo para brincar com eles, muitas vezes chegam esgotados e stressados de um complicado dia de trabalho e não conseguem encontrar energia para ter tempo de qualidade com os filhos, é difícil ter tempo de qualidade sem uma vida com qualidade.

 

"é difícil conciliar a vida familiar com a vida profissional, alguém fica sempre a perder, normalmente o elo mais fraco, as crianças"

 

Com o passar dos anos a situação só piora, começam as atividades extra, os eventos desportivos aos fins-de-semana, a vida social das crianças que começa a ser mais intensa que a dos pais e os TPC, alguém entende como é que com carga horária que os miúdos têm, estes ainda levem inúmeros exercícios para fazer em casa?

Os pais dividem-se para dar conta das tarefas, é difícil conciliar a vida familiar com a vida profissional, alguém fica sempre a perder, normalmente o elo mais fraco, as crianças, multiplicam-se os problemas, os pais deixam de ser pais, deixam de ser um casal e às vezes chegam a perder a própria identidade, vivendo em piloto automático numa roda em que não há tempo para nada, quanto mais tempo para pensar na vida.

 

"os portugueses não têm dinheiro para ter uma vida digna"

 

Mem sequer podemos acusar os pais de trabalharem para o consumo, fica bem dizer que vivemos alheados dos filhos porque lhe queremos dar tudo, não é verdade, vivemos alheados dos filhos porque não temos alternativa, porque temos de os alimentar, vestir e educar.

Caímos na falácia que estamos assim porque queremos, porque temos as prioridades invertidas, na verdade não temos grandes alternativas, mas preferimos pensar que temos, é mais fácil assumir a culpa do que perceber que não vivemos para sermos felizes, mas que vivemos para pagar contas, na verdade como escrevi em 2017, os portugueses não têm dinheiro para ter uma vida digna.

 

"Os portugueses não têm tempo para viver como podem ter tempo para ter filhos?"

 

Assumiu-se que é normal entupir as crianças de atividades desde as 7h da manhã às 7h da tarde, deixando-lhe pouco tempo para serem crianças, assumimos que isso lhes faz bem, formatamo-las para serem quadradas, sem pensamento crítico, sem curiosidade e dizemos-lhe que um dia terão tudo só porque achamos que merecem ter.

Nem sequer fazemos o exercício que ninguém tem o que é mais importante, tempo para viver. Os portugueses não têm tempo para viver como podem ter tempo para ter filhos?

Continuamos embrenhados em não assuntos, em indignações sem sentido, entupidos até aos olhos de lixo, de notícias falsas, de falsas questões, de contestações desprovidas de sentido e continuamos sem reclamar o que realmente importa, tempo para viver.

 

"as pessoas andam revoltadas e frustradas e acham que é do tempo estar cinzento"

 

Portugal é dos países onde mais se trabalha na Europa, 39,5h semanais, só é ultrapassado pela Grécia, curiosamente os países mais produtivos são aqueles onde se trabalha menos horas, de notar que a média em Portugal incorpora a função pública que neste momento trabalha 35 horas semanais, caso contrário seria ainda pior.   

Os dados são bem específicos, são factos, há uma correlação entre o horário de trabalho e produtividade, há inúmeros estudos que concluem que para a nossa saúde deveríamos trabalhar menos horas, quanto mais trabalhamos, mais cansaço acumulamos, somos menos produtivos, temos de realizar horas extras, trabalhamos mais, mais cansaço e o ciclo nunca é interrompido.

Não temos tempo para ter filhos, não temos tempo para viver, mas ninguém parece estar realmente preocupado com isso e os dias sucedem-se uns atrás dos outros e as pessoas andam revoltadas e frustradas e acham que é do tempo estar cinzento, a culpa é do tempo, mas não do clima, é da falta de tempo para viver.

Voltar a ser Mulher depois de ser Mãe

"esse amor imensurável veio acompanhado de um medo desmedido e incompreensível."

 

Os primeiros dias foram repletos de emoções, um amor que transbordava dentro de mim, que não cabia sequer dentro do peito tomou conta de todo o meu ser, já me sentia mãe há muito tempo, mas foi ali no momento em que te vi sair de dentro de mim e te tomei nos meus braços que me tornei efetivamente mãe e esse amor imensurável veio acompanhado de um medo desmedido e incompreensível.

Na primeira noite não dormi, na segunda os meus olhos fecharam-se por alguns instantes, apenas para logo se abrirem para assegurar-me de que estavas bem. Nunca desejei tanto a minha casa, a minha cama, o meu chuveiro, os meus objetos, os meus cheiros, o meu mundo que agora seria o teu.

 

"é fácil esquecermo-nos de nós, é muito fácil esquecermo-nos que a vida não se resume a ser mãe"

É incompreensível como um ser tão pequeno e tão frágil enche uma casa, mas a casa passou a ser tua e pensada para ti, a logística foi-se aprimorando durante os dias e chegamos a um meio-termo, conseguimos que nem toda a casa fosse exclusivamente tua, mas foi difícil, ainda hoje é, mas não é necessariamente mau, gosto de olhar e perceber que aquele brinquedo ou aquela fralda de pano está ali porque existes na minha vida e a minha vida ficou muito mais rica contigo.

Os primeiros dias são uma loucura, é uma rotina impossível, sonos tão curtos, necessidades que tão prontamente têm de ser atendidas, é fácil esquecermo-nos de nós, é muito fácil esquecermo-nos que a vida não se resume a ser mãe, principalmente porque não conseguimos deixar de ficar embebecidas com qualquer coisa que o bebé faça, tudo é especial, o mais pequeno gesto arranca-nos suspiros e os sorrisos enchem-nos de tanto orgulho e amor que ficamos estarrecidas, embasbacadas e sem palavras.

 

"Voltar a ser Mulher depois de ser Mãe nem sempre é um processo natural"

Necessitamos de tempo para nós, mas as nossas necessidades ficam sempre para último lugar, depois de cuidar do bebé é preciso tratar de uma série de coisas para garantir que o bebé tem tudo o que necessita, entre compras, roupas e tarefas domésticas, sobra pouco tempo para sermos nós e na maioria dos dias nem nos lembramos disso.

Voltar a ser Mulher depois de ser Mãe nem sempre é um processo natural, estamos de tal forma envolvidas e dependentes da nossa cria, acho que a certo ponto os papéis se invertem, as mães ficam mais dependentes dos bebés do que os bebés das mães, que é difícil enquadramos na nova rotina toda a nossa vida.

 

"Respiramos fundo e fazemos um esforço para esquecermos que parecemos um trambolho e tentamos ficar o mais apresentáveis possível."

No meu caso, o primeiro grande esforço que fiz foi para manter a vida social, ficar em casa para além de não ser saudável, afasta-nos das pessoas e é importante ter vida social para além do bebé, confesso que muitas vezes pensei que seria mais fácil recusar convites e ficar em casa, a logística para sair era imensa, ainda é, mas não iria cair no erro que tanto criticara, não caí, muitas vezes saí contrariada, mas saí, ficar em casa não podia ser a opção.

Não é fácil ir a festas, encontros, jantares sendo mãe há poucos dias ou meses, ultrapassada a logística do bebé é preciso ultrapassar a nossa e essa, com as devidas exceções, creio ser a mais difícil, para além da falta de tempo há que contar com a falta de motivação para nos arranjarmos, abrimos o roupeiro e praticamente nada nos serve, vestir roupa de grávida não abona em nada ao nosso estado de espírito, olhamos ao espelho e aquele brilho que há uns meses atrás exibíamos desapareceu, temos a pele baça, o cabelo desnutrido, os olhos fundos e o semblante carregado de sono, preocupações e tarefas que gostaríamos de ter realizado, mas que ficaram por fazer.

Respiramos fundo e fazemos um esforço para esquecermos que parecemos um trambolho e tentamos ficar o mais apresentáveis possível.

 

"ficamos sempre para último lugar."

O corpo não reage como esperávamos que reagisse, nem com contínuas noites mal dormidas, alimentação a horas incertas e com a incessante sensação de fome e sede o nosso organismo se contraí, pelo contrário, às vezes expande, incha por falta de descanso. Fazemo-nos valer da máxima foram nove meses a crescer, agora serão necessários noves meses para emagrecer.

Tomamos banhos apressados, fazemos um esforço para cuidar de nós, mas nunca temos tempo para o fazer, pensamos é hoje que vou hidratar a pele do corpo, esse hoje nunca chega, o tempo passa, mas nunca chega para nós, a rotina fica mais fácil, mas não há nela lugar para nós, ficamos sempre para último lugar.

 

"Ser Pai também não é fácil"

A Mulher fica para segundo plano e com isso a relação com o marido também, a nossa atenção está no bebé e parece que nada que o marido faça é suficiente, um parêntesis aqui para agradecer ao meu, esteve, está sempre presente, sofrendo horrores com as minhas variações de humor, tem aguentado estoicamente todas as minhas loucuras e devaneios, muitas vezes sem sequer um agradecimento. Amo-te meu amor, sem ti esta aventura não teria sentido, obrigada por estares sempre ao meu lado.

A relação ressente-se, não há maior prova, maior teste a uma relação que o nascimento de um filho, tudo muda, as prioridades estabelecem-se numa ordem completamente diferente e se as mães não têm tempo para si, dificilmente têm tempo para cuidar e mimar os maridos, companheiros.

 

Ser Pai também não é fácil, sabemos bem disso, mas depois pensamos na nossa abnegação e entrega e pensamos para nós é muito mais complicado, será? Não sei, sei apenas que são posições diferentes e igualmente importantes, sei que as mães se sentem frustradas por não conseguirem fazer tudo e os pais sentem-se muitas vezes impotentes por não conseguirem ajudar, cabe a nós inclui-los ao máximo na vida dos nossos bebés, excluí-los só prejudica todas as relações. Ninguém trata do nosso bebé como nós, certo, mas também ninguém trata os nossos bebés como os pais os tratam, mesmo quando lhes vestem as coisas mais engraçadas.

 

"É muito fácil deixar-nos tomar pela culpa e pela angústia"

No meio desta nova dinâmica familiar, é difícil sentir-nos bem connosco, parece que estamos sempre a falhar em alguma esfera, não conseguimos atender a todas as necessidades e esse mito de que é possível ser-se a mãe, esposa, familiar e amiga perfeita não passa de uma utopia perpetrada por mulheres frustradas que gostam de ver as outras ainda mais frustradas que elas.

É muito fácil deixar-nos tomar pela culpa e pela angústia, caso tenham esses sentimentos procurem ajuda, a maternidade é bela, mas não é um mar de rosas, nem sequer um passeio no parque, é um mundo novo, muito atribulado, povoado de incertezas e inseguranças.

 

Voltar a ser Mulher depois de ser Mãe é complicado, com leite a brotar dos seios sem aviso, quilos a mais nos locais menos apropriados, inseguranças, sem tempo para nos sentirmos bonitas, fará desejadas, com mil e um receios, com mil e uma coisas na cabeça, às vezes tudo o que precisamos é de um carinho, de um abraço, mas estamos demasiado cansadas para erguer os braços.

É tudo uma questão de prioridades? Não, nem sempre.

Na nossa vida tudo gira em volta de prioridades, todo o nosso dia é definido por prioridades desde que nos levantamos até à hora que nos deitamos, tudo é uma questão de prioridades e tudo tem um custo de oportunidade, já que, ainda, não é possível estar em dois locais ao mesmo tempo.

O que é verdade é que nem sempre podemos definir as nossas prioridades a nosso bel-prazer, por razões tão básicas como ter necessidades fisiológicas, por razões racionais, afinal as contas não se pagam sozinhas e por razões emocionais, procuramos sempre fazer que nos faz felizes, mas com alguma racionalidade.

 

Se fosse tudo uma questão de prioridades, a vida, pelo menos a minha, seria bem mais fácil, dormia até às 9:30h da manhã, tomava um pequeno-almoço estilo brunch, de seguida em dias alternados fazia exercício, caminhadas, ia ao salão de beleza e estética, fazia compras, comia qualquer coisa leve e trabalhava umas 3h, até por volta das 20h dedicava a cuidar e a brincar com a minha filha, depois jantava e tirava umas horas para o ócio, namorar, ver filmes, ler…

Ah vida perfeita! Infelizmente a minha conta bancária não me permite ter estas prioridades e não me venham dizer que se tivesse estabelecido ser rica como prioridade número um poderia agora estar a viver esta vida de sonho, porque tenho notícias para vocês gangue da inspiração, empreendedorismo, busca interior, coaching e afins, a vida não é um mar de rosas, calmo e povoado de flamingos e unicórnios confortavelmente sentados em mandalas com os chakras alinhados.

 

Isto tudo porquê? Porque não tenho tempo para nada e não admito que me venham dizer que é tudo uma questão de prioridades, a sério? Mas alguém pode ter prioridades com uma bebé de 6 meses? Não, a única prioridade é a bebé, que, graças a Deus e a todos os santos, tanto pedi a menina é mesmo um anjo, um doce que só visto, às vezes, juro, penso como é que tive tanta sorte?

Mesmo quando lhe alteramos as rotinas e lhe trocamos as voltas, não reclama, está sempre com um sorriso nos lábios e pronta para nos encher de mimo com um olhar terno e uma caricia sedosa com as mãos mais fofas que conheço.

 

A vida é isto um amor imensurável e um stress descomunal quando percebo que o tempo não estica e não chega para nada e que a minha bebé que deveria estar comigo o maior tempo possível é “obrigada” a estar longe por força das circunstâncias e vejo-me obrigada a inverter prioridades e a colocar a estabilidade financeira à frente da estabilidade emocional, bem sei que no fundo é porque é prioritário ter as condições necessárias para cuidar bem dela, mas isso não impede que sinta revolta e alguma culpa.

Não, não é tudo uma questão de prioridades, é mais uma questão de sobrevivência, num mundo tão evoluído, onde a tecnologia reina, as relações humanas fracassam, o tempo para a família escasseia, estamos cada vez mais reféns de um modo de vida consumista, egoísta, numa espiral sem fim onde lutamos para ter aquilo que não precisamos e que na verdade nem desejamos, simplesmente nos dizem que devemos ter.

 

Está tudo invertido, tudo do avesso, nem os milhares de estudos científicos que nos dizem com certezas o que é melhor para nós e para os nossos filhos a situação muda, continuamos a privilegiar o dinheiro, nesta roda capitalista onde os bolsos de muitos se esvaziam para encher os bolsos de poucos.

E depois quando tudo acaba é triste perceber que a vida afinal foi uma mão cheia de nada, pois o dinheiro, a riqueza, o sucesso e o poder transformam-se em miséria humana, amor, carinho, compaixão, amizade são vistas em perspetiva e o coração definha seco, sedento e faminto daquilo que não teve, mas que sempre lhe fez falta.